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segunda-feira, 30 de maio de 2016

Síndrome de Antuérpia

Autor: João Felgar
Edição: 2016/ maio
Páginas: 268
ISBN: 9789897243059
Editora: Clube do Autor


Sinopse:
No princípio tinha corpo e nome de homem. Depois partiu da aldeia, foi-se embora. Quando voltou era uma mulher, com um nome estranho e um passado de estrela dos palcos. Mas talvez fosse mentira. Por algum tempo foi atração de uma boîte de beira de estrada. Até à noite do incêndio, quando lhe deram o nome de Castiça, e se tornou a tola da aldeia. 
No primeiro sábado da Quaresma, Castiça aparece morta no fundo de uma pedreira abandonada. Traz vestida ainda a roupa que usara durante o corso e o baile de carnaval. Castiça era a doida da aldeia, cantava nas esquinas, bebia muito, e dizia asneiras alto. Mas não foi sempre assim, nem teve sempre esse nome. 

Justiniano Alfarro é preso no próprio dia em que o corpo é descoberto, porque tudo indica, com uma clareza sem margem para dúvidas, que foi ele quem a matou. Seria tudo um logro, um embuste, porque Justiniano era o mais perfeito dos homens. Mas nenhuma voz se levantou quando o levaram, e todos aceitaram a notícia num silêncio cúmplice. Todos, menos as mulheres que o amaram. 
Antuérpia, sua filha, é uma dessas mulheres. Convencida de que enfrenta um conluio, prepara-se para repor a verdade procurando-a no passado do pai. Mas engana-se, porque a origem de tudo está no futuro da aldeia.

A minha opinião:
Gosto cada vez mais de ler romances de autores portugueses. E se antes isso me surpreendia, atualmente não acontece porque espero ler algo francamente bom e com a nossa marca. Personagens com facetas que identifico, em contextos que reconheço e em circunstancias que compreendo. 
O que me surpreende é esse gosto cada vez apurado não estar mais difundido e o novo não ser motivo de curiosidade e interesse para tantos outros leitores como eu. Assim, tento espicaçar essa vontade de novas e quiçá felizes incursões literárias partilhando a minha opinião. 

Para o fazer tenho que reler os parágrafos que marquei com post its porque este pequeno livro prendeu a minha atenção tanto pela forma como pelo conteúdo. A escrita e a capacidade de expressar ideias lúcidas e bem articuladas numa trama que desvendei no inicio, mas que ainda assim me deixou cativa com a caracterização gradual de todas as personagens sem enfado ou decepção, e a confirmação do desfecho que a mestria do autor não desiludiu. Não é uma historia feliz mas é uma historia possível e impõe alguma reflexão. Os juízos de valor e as regras de conduta desta pequena comunidade fascinaram-me. 

"Há seres que não se procuram nem fazem falta, mas que não se dispensam depois de os termos. São amuletos que não dão sorte, mas não se jogam fora para não darem azar. E´ por isso que as aldeias devem ter sempre, pelo menos um tolo, para que a tolerância possa ser aprendida e exercida sem se pedir grandes concessões aos valores. Um ganho para a tranquilidade de consciência, que se alcança sem perdas morais a lamentar."                              (pag. 236)  

terça-feira, 24 de maio de 2016

A Livraria dos Finais Felizes

Autor: Katarina Bivald
Edição: 2016/ abril
Páginas: 528
ISBN: 9789896650704
Editora: Suma

Sinopse:
Se a vida fosse um romance, o da Sara certamente não seria um livro de aventuras. Em vinte e oito anos nunca saiu da Suécia e nenhum encontro do destino desarrumou a sua existência. Tímida e insegura, só se sente à vontade na companhia de um bom livro e os seus melhores amigos são as personagens criadas pela imaginação dos escritores, que a fazem viver sonhos, viagens e paixões. Mas tudo muda no dia em que recebe uma carta de uma pequena cidade perdida no meio do Iowa e com um nome estranho: Broken Wheel. A remetente é uma tal Amy, uma americana de 65 anos que lhe envia um livro. E assim começa entre as duas uma correspondência afetuosa e sincera. Depois de uma intensa troca de cartas e livros, Sara consegue juntar o dinheiro para atravessar o oceano e encontrar a sua querida amiga. No entanto, Amy não está à sua espera, o seu final, infelizmente, veio mais cedo do que o esperado. E enquanto os excêntricos habitantes, de quem Amy tanto lhe tinha falado, tomam conta da assustada turista (a primeira na história de Broken Wheel), Sara decide retribuir a bondade iniciando-os no prazer da leitura. Porque rapidamente percebe que Broken Wheel precisa de um pouco de aventura, uma dose de auto-ajuda e, talvez, um pouco de romance. Em suma, esta é uma cidade que precisa de uma livraria. E Sara, que sempre preferiu os livros às pessoas, naquela aldeia de poucas gente, mas de grande coração, encontrará amizade, amor e emoções para viver. E finalmente será a verdadeira protagonista da sua vida.

A minha opinião
Uma tentação a que não resisti. A capa e o titulo sugerem um livro sobre livros, o que a uma livrólica assumida não deixa alternativa.

Uma livraria com livros com finais felizes intriga. E esta é uma livraria muito especial que resulta do esforço de Sara com o espolio de Amy em retribuir a uma pequena comunidade, que subsistia graças a uma rede de favores em cadeia, com um livro para cada um dos seus habitantes. O que consegue de uma forma simplista e muito eficaz e paulatinamente cativar o leitor.

Achei muito curiosa a livraria com obras que Sara bem conhecia, muitos lidos e relidos e como tal catalogados não por géneros literários, mas com indicações úteis e relevantes para um leitor não experimentado que precisasse de informação para se deixar seduzir.

Sara aceita um convite para passar dois meses numa pequena cidade do Iowa para conhecer com quem convivia por carta. E as surpresas sucedem-se porque apesar de Amy ter referido muito nas suas cartas, não corresponde exatamente ao esperado. E nesta aventura, com alguma reciprocidade com personagens bem peculiares se desenrola a ação. Mais do que um livro sobre livros temos um livro sobre a descoberta de novos amigos e o quanto podemos mudar por influencia dos outros e... de um bom livro.

"Não é que os livros conseguissem, de uma maneira ou de outra, atenuar o sofrimento causado pela guerra, quando um ente querido morria ou alcançar a paz mundial ou algo do género. Porém, Sara não conseguia deixar de pensar que na guerra, tal como na vida, um dos grandes problemas era o tédio, um desgaste lento e implacável. Nada de dramático, apenas uma erosão gradual da energia do individuo e da sua vontade de viver.
Então, o que poderia ser melhor que um livro?"        (pag. 154)

segunda-feira, 9 de maio de 2016

Uma Senhora Nunca

Autor: Patrícia Müller
Edição: 2016/ abril
Páginas: 280
ISBN: 9789897222962
Editora: Quetzal Editores
 
Sinopse:
A resistência aos turbilhões sentimentais, a vitória da vida sobre o tempo que nos devora. Maria Laura é senhora desde que nasceu. Oriunda de uma família antiga e latifundiária, nunca trabalhou um dia na vida. Casa-se, tem filhos, gere um país próprio - o apartamento onde mora numa zona rica de Lisboa. Cuida de vivos e mortos com uma devoção cristã. Depois, enlouquece de medo e de rancor perante todas as mudanças que vêm com a Revolução de Abril de 1974. Esta é a vida de Maria Laura, da sua insignificância e das suas memórias familiares, mas também a história de um amor proibido, filho do marido, a da obsessão em cumprir regras que nunca discutiu, a da demência que é a antecâmara da morte - e a resistência aos turbilhões sentimentais, a vitória da vida sobre o tempo que nos devora. Esta é também uma história romântica, violenta e voluptuosa da vida dos seus pais e filhos, extensões naturais dos braços tentaculares da Senhora. E uma narrativa natural, intimista e sexual do século xx: uma família que vive com o poder e a glória - e que tudo perde com o 25 de Abril.

A minha opinião:
Gostaria de ter ido ao lançamento deste livro para conhecer quem escreve assim, mas no mesmo dia sobrepuseram três acontecimentos de autores que muito prezo.

Patrícia Müller conseguiu mais uma vez, (depois de "Madre Paula"), deslumbrar-me com uma personagem forte e simultaneamente frágil que, quase parece banal como na vida real onde se inspirou, se não penetrasse no universo mental de Maria Laura. 

"Uma senhora nunca deixa de ser senhora, mas pode sentir-se mulher."   (pag. 258)

"Eu sempre vivi duas vidas. Nas duas existo, vejo, sinto, ouço, penso." (pag. 49)

"(...) Maria Laura, uma cabra e uma santa, não ao mesmo tempo, mas com a mesma cara." 
(pag. 249) 

Uma história familiar, antes e depois do 25 de Abril de 1974. Mudanças repentinas e algumas nem tanto entre mães e filhas que não percebem que o amor tem várias feições e repetem um padrão que nada tem de coincidência apesar da generosidade transmitida pelo sangue. Sem a garantia de que nunca lhes falte um casaquinho de malha sobre os ombros.

Criadas que garantem a eficiência e o rolar dos dias sem sobressaltos, mas sem o amor maternal de quem cuida, resumido apenas a uma presença simples e silenciosa no combate à solidão. 

"Uma senhora não se estende às criadas, mesmo que a infância tenha sido passada em cima da barriga de uma."      

"Nem sempre a pessoa que está dentro do coração e da alma obedece aos preceitos do senso comum."   (pag. 159)

Relações amorosas falhadas por infâncias incompletas. Matrimonio com afetividade mas sem sexo porque esse reservavam os maridos para o pessoal domestico e afins. 

Perdas para uma mulher que deixa de olhar a vida da mesma forma. 

"A memoria aprisiona-se num espaço e num tempo em que foi feliz." 

"A demência começa a nebular o buraco que Maria Laura tem no coração." (pag. 270)

Prodigiosa imaginação da autora e talento para contar una história que me prende desde o início, sem que esta se torne insípida ou maçadora e assim suscita em mim uma profunda admiração.